sexta-feira, 1 de maio de 2015

Elegia para luiza goulart, no céu do Piauí

(autor: H. Dobal)
Você ainda não morreu, Luiza, e talvez só morra depois de mim. Talvez não morra nunca. Mais estou aqui desocupado, malandrão, e me agrada pensar em você, entrar nessa conversa miolo-de-pote, como dizia naquele tempo a gente pobre, que você só conhecia de ouvir dizer e que, eu, infelizmente, conhecia bem de perto.
Outro dia, atravessando a ponte sobre o lago, levantei a vista acompanhando o aclive e tive um choque no coração: o azul celeste, profundo, me trouxe de volta o céu do Piauí. O clarazul céu do Piauí, arqueado sobre o amor impuro que tentamos esconder.
Logo depois da ponte, um bosque de eucaliptos prateados, devastado pelo fogo, me fez lembrar o seu rosto branco, que já deve estar um tanto maltratado pelo tempo. Os cabelos descorados, o seu rosto branco onde o nariz de linhas puras compensava os dentes mal implantados. Nunca perdi tempo tentando saber se você era bonita.
Talvez não fosse. Você era branca, desajeitada, de modos bruscos (para os outros). Ninguém gostava de você, lhe conto agora esta verdade. Nem seu pai, que era parecido demais com você e esta semelhança era uma fonte constante de choques. Nem sua mãe que - era o que diziam - não gostava de seu pai e por isso não gostava também de você.
Nem seu marido. Vocês liam juntos, na cama, antes de dormir, ou melhor, você lia, porque ele nunca foi de muita leitura. Mas a verdade é que vocês continuaram juntos, talvez ainda continuem: o casal que lê junto permanece junto.
Você era feia, mal-educada, grosseira (para os outros). Você às vezes punha um vestido vermelho sobre a sua brancura, você às vezes punha uma súbita crise de ternura no seu jeito-de-ser. Eu me lembro de você num meio-dia de sol violento: o vestido vermelho, o vermelho violento, a ternura rebentando como um relâmpago num céu noturno de chuvas.
Naquele tempo eu estava desocupado, doente a morna sonolência da tarde prendia num quarto entre tranquilas, mal emolduradas reproduções de Renoir. Eu pensava em você. Não era um começo de vida, era uma expectativa de fracassos.
Éramos quase da mesma idade e isto nos separava. Naquela época havia um descompasso muito grande entre o tempo de um rapaz e o de uma moça. As moças botavam corpo muito mais cedo, casavam com rapazes muito mais velhos. Já era tarde demais para nós.
Vivi muitos anos desde aquele tempo. Saí de casa, fiz boa romaria. Não se cumpriu aquela expectativa de fracasso. Cheguei à minha posição, estou hoje aqui, desocupado, me agrada pensar e você. Fico tentando reconstruir aquela cidade, abafada pelo calor. Você não se diluiu na luz, ainda deve estar vivendo ali, sob a eternidade do clarazul céu do Piauí.
Fico pensando, conversando miolo-de-pote com você. Canta na minha memória a nostalgia de uma música que eu não posso desligar. Fica comigo esta noite, então seremos felizes. Você não ficou. Não ficará nunca. Só me resta lembrar. Você era banca demais, tinha um jeito de andar desgracioso, ninguém gostava de você. Tento continuar lembrando. Mas vejo que assim vou destruindo você devagarinho, você vai ficando toda morta. Acho que é isso mesmo o que eu quero.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

FACTUS EST

          autor: H. DOBAL

O que fez o verão também fez
esta água parada água de mal viver.
Fez o dia de cacto e macambira, o dia de sono e sol
sobre a sombra dos pequizeiros. Fez a luz nos olhos
das onças pretas. Os bichos bravos
pisando macio nas folhas secas. As passadas fundas
na areia das trilhas
onde os comboios de jumentos
levaram suas cargas
de carne-seca, farinha e rapadura.
O que fez da vida a selva escondida nos troncos
sob o sol. Fez os olhos da pedra
que vence os verões. Fez as palhas da carnaúba
e as águas cortadas
águas mornas
água de barro
água de cacimba
que a sede não refuga.
O que parou as águas fez irreal este silêncio
dos chapadões. Fez os bichos obstinados
de sol e de poeira: as cabras as formigas
os cupins o homem sóbrio
e os seus dias de mal viver.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Um alguidar de cinzas

autor: H. Dobal

O que resta de mim vive nestes ossos, desenterrados por acaso. Um golpe de enxada na terra seca e de repente aparece a limpeza dos ossos sobrevivendo ao pecado da carne.
     A terra seca, limpa das vassourinhas e das cristas de galo, devolve o poder branco dos ossos. White is beautiful. A morte é branca e bonita. Alguém me falou, há muitas eternidades, de um cemitério de escravos no oitão da igreja: os ossos forros descansam ali, dia e noite, em completa igualdade com todos os outros. E meu bisavô, André Teixeira, o inflexível matador de padre, que terminou os seus dias enquadrado na lei e nos costumes, está enterrado num dos túmulos da chapada, onde os tatus cavam seus túneis.
     Este golpe de enxada faz com que os meus ossos sejam desenterrados pela segunda vez. Morto em terra estrangeira, lá deveria eu ter permanecido até a duração dos ossos. Mas meu filho, por misteriosas razões que nem a morte nem o sonho conseguem desvendar, quis me trazer de volta para a terra humilde de onde eu partira. Ele próprio me trouxe. E durante a volta teve um gesto imprevisto, para cujas misteriosas razões até hoje não encontro explicação: na noite do hotel em que paramos, longa e sem sono, ele abriu a caixa de isopor, retirou os meus ossos, colocou-os, cuidadoso, na mesinha da cabeceira, e ficou a mirá-los durante algum tempo.
     Não há aqui nenhum comércio de mistérios. Livrei-me de toda a ligação com ascendentes ou descendentes. Livrei-me da voz pungente da negra americana na música triste que o meu filho costumava ouvir nas tardes de sábado. Libertei-me do acontecimento das guitarras elétricas, da música que entristecia a juventude de meu filho, do cão negro que me perseguia com a depressão. Livrei-me do peso de chumbo das tardes de sábado.
     Não foi doloroso. Fui ficando sozinho, fui secando aos pouco. Agora estou aqui entre esses muros caiados. Em muitas noites o luar se derrama numa cousa só, branco como os ossos. Estou de novo nesta terra humilde de onde eu comecei. Mas talvez fosse melhor se estivesse no chão da chapada repetindo uma turva resposta aos que não voltam. Esquecido ao lado das colônias de cupins, tão silenciosas como se o tempo as construísse. Recebendo o calor do dia, onde os bichos se repetem, um céu sem ruflos sobre a cinza das copas e a noite fresca de segredos, cortada pelo vôo incerto dos rasga-mortalhas.
     Esta dormência no braço direito deve ser da posição. Não sinto mais o frio leve da madrugada do planalto, entrando pelas rótulas do jardim. Mas, sonho ou morte, dói-me  peso destes ossos. É preciso cremar o poder branco destas lembranças. Transformar tudo num punhado de cinzas.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Fazenda

autor: H. Dobal

São trinta cabeças 
de gado cabrum.
Criação miúda
sem qualquer ciência.
Somente um chiqueiro
defesa noturna
que bem cedo aberto
o dia lhes dá.

Rústicas a vida
de qualquer maneira
sabem extrair.
Mas vem da morte
sua serventia
o couro e a carne para o homem
mais pobre do que elas. 

domingo, 26 de janeiro de 2014

Cantiga de Viver

Autor: H. Dobal

Sozinho na cama
Um homem espera sua hora.
A inesperada hora de tantos.

A vida é uma cantiga triste
Mais triste e à-toa que a das andorinhas
-las oscuras golondrindas
tão mal vivida
tão mal ferida
tão mal cumprida.

A vida é uma cantiga alegre:
O primeiro sorriso de cada filho
E todos os microamores
Que inutilizam
A vitória da morte.