sábado, 25 de maio de 2013

A INSÔNIA DO MAR (excertos)


     autor: Everaldo Moreira Veras
Oh, Deus, não reserve nada para mim!
Já estou completo:
dores,
amores,
temores.
Não me acrescente:
no túnel não sobra
lugar para nada.
O vão se abriu e a chaga fechou
(por favor, não mexa aí).
Oh, Deus, não reserve nada para mim!
Entregue tudo aos outros
(eles não sabem quem são)
e dependem
e sofrem
e não sentem que sofrem.
Entre todos divida o meu:
em cada prato mais pão,
em cada copo mais vinho.
Oh, Deus, não reserve nada para mim!
Reproduza amanhã
a ceia que vi ao meu redor, hoje.
Transforme o instante
em longa vida,
garantindo luz
e eternizando gestos.
Quero o riso, a alegria e a festa.
Também a mesa farta e grávida.
Faça-se daquele jeito e mais.
Repita-se a noite e sempre.
Cante-se o hino e a prece.
Mas,
Oh, Deus, não reserve nada para mim!
Nesse tempo,
eu mesmo não mereço:
porque o mínimo (embora pouco)
seria injusto.
Oh, Deus, não reserve nada para mim!


*   *   *

Amanhã, certamente morrerei.
Porque logo cedo, hoje, o sol brilhava
e o vento chorava.
Então, refiz o corpo
(a minha carcaça),
muitos parafusos
foram fixos e ajustados.
(Os outros continuam frouxos,
Impossível o reaperto)
Saí por aí
cumprimentando as pessoas,
elas em busca do amor e do encontro.
Eu, não.
Me dominava a certeza
de que eu seguia
a direção especial nortedeusmente
indicada pela luz e
pelo relógio da catedral.
As folhas me contaram estórias
acontecidas ontem de madrugada.
Ignorei-as,
afinal não me interessava
o ruído da máquina esquisita
que não me deixou meditar.
Vi
a paz falsa e retilínea
me abraçando.
Por isso: prepare-se o mundo,
todo cuidado é pouco,
pois estou disposto a tudo.
Afinal de contas, estou bêbedo e
hoje, segundo dizem, é feriado nacional.


*   *   *

 Vou fabricar com as mãos
os poemas.
Escolherei as mais duras palavras,
somente aquelas
que possam destruir
a impassível estátua de pedra
A canção perfeita nascerá,
porque há desordem
ao redor dos homens, nas ruas.
Rasgarei papel e
prepararei tintas
para jogar
contra os olhos dos fantasmas
coxos e cegos.
Ninguém descobrirá
que a produção é humilde:
o demônio contrito a rezar,
pensando
que também
é
filho de Deus.
Ainda não sei quando recomeçarei
a tarefa atormentada de colorir idéias
do jeito que os homens organizam
um banquete para muitas pessoas.
Vou fabricar com as mãos
os poemas.
Não posso garantir o local exato:
sei que está no interior
a dor
(o amor?),
que me perturba e
me persegue.
Logo que o dia desceu da carruagem,
Adivinhei:
Manhã? Tarde? Noite?
Eu sabia: noite, sim,
porque somente
o
escuro protege o que verdadeiro
é.
Agarro
o que me percorre
como o vento,
eis a primeira perdição.
As luzes cochilam, tremendo
frente ao inimigo
sozinho descansando
(eu mesmo).
Não há possibilidade
de a crise diminuir.
Estou à procura do remédio,
o peito segura e esconde a angústia.
Infelizmente,
o motim é do lado esquerdo.
(E lá, não tenho nenhuma ingerência!)


Extraídos de VÉRAS, Everaldo Moreira.  A INSÔNIA DO MAR.  Recife: Edições Sarev, 1999.  102 p.

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