segunda-feira, 28 de abril de 2014

Um alguidar de cinzas

autor: H. Dobal

O que resta de mim vive nestes ossos, desenterrados por acaso. Um golpe de enxada na terra seca e de repente aparece a limpeza dos ossos sobrevivendo ao pecado da carne.
     A terra seca, limpa das vassourinhas e das cristas de galo, devolve o poder branco dos ossos. White is beautiful. A morte é branca e bonita. Alguém me falou, há muitas eternidades, de um cemitério de escravos no oitão da igreja: os ossos forros descansam ali, dia e noite, em completa igualdade com todos os outros. E meu bisavô, André Teixeira, o inflexível matador de padre, que terminou os seus dias enquadrado na lei e nos costumes, está enterrado num dos túmulos da chapada, onde os tatus cavam seus túneis.
     Este golpe de enxada faz com que os meus ossos sejam desenterrados pela segunda vez. Morto em terra estrangeira, lá deveria eu ter permanecido até a duração dos ossos. Mas meu filho, por misteriosas razões que nem a morte nem o sonho conseguem desvendar, quis me trazer de volta para a terra humilde de onde eu partira. Ele próprio me trouxe. E durante a volta teve um gesto imprevisto, para cujas misteriosas razões até hoje não encontro explicação: na noite do hotel em que paramos, longa e sem sono, ele abriu a caixa de isopor, retirou os meus ossos, colocou-os, cuidadoso, na mesinha da cabeceira, e ficou a mirá-los durante algum tempo.
     Não há aqui nenhum comércio de mistérios. Livrei-me de toda a ligação com ascendentes ou descendentes. Livrei-me da voz pungente da negra americana na música triste que o meu filho costumava ouvir nas tardes de sábado. Libertei-me do acontecimento das guitarras elétricas, da música que entristecia a juventude de meu filho, do cão negro que me perseguia com a depressão. Livrei-me do peso de chumbo das tardes de sábado.
     Não foi doloroso. Fui ficando sozinho, fui secando aos pouco. Agora estou aqui entre esses muros caiados. Em muitas noites o luar se derrama numa cousa só, branco como os ossos. Estou de novo nesta terra humilde de onde eu comecei. Mas talvez fosse melhor se estivesse no chão da chapada repetindo uma turva resposta aos que não voltam. Esquecido ao lado das colônias de cupins, tão silenciosas como se o tempo as construísse. Recebendo o calor do dia, onde os bichos se repetem, um céu sem ruflos sobre a cinza das copas e a noite fresca de segredos, cortada pelo vôo incerto dos rasga-mortalhas.
     Esta dormência no braço direito deve ser da posição. Não sinto mais o frio leve da madrugada do planalto, entrando pelas rótulas do jardim. Mas, sonho ou morte, dói-me  peso destes ossos. É preciso cremar o poder branco destas lembranças. Transformar tudo num punhado de cinzas.