quarta-feira, 1 de maio de 2013

O Adulto Incompleto

                   autor: H. Dobal
     Das alturas da noite volta o confuso ressoar de latidos.
     Acordo para os meus sonhos. Umalembrança antiga- os cães vadios que velavam nos arrabaldes- me traz de novo para a vida, para esta noite escura, cortada por palpitações.
     Sou um homem entre a infância e velhice, entre vigília e sono. Acorda em mim uma cidade vivida, onde os cães ladravam de madrugada. Acordo como transeunte numa cidade sem esquinas.
     Hoje vivo numa cidade sem ruas e não me sinto mais ligado a cidade nenhuma. A passagem do tempo tornou irreal a minha própria cidade. Voltei lá depois de muitos anos. Reconheci algumas casas, algumas árvores e os rios, que aparentemente  eram os mesmos. Mas no todo era uma cidade descaracterizada, invadida por estranhos. O burgo sonolento e amável se desmaterializou, mas continua intacto num lugar acessível da memória.
     Agora volto lá frequentemente em sonhos. Isto é bem claro: não é uma cidade desaparecida que volta para mim. Sou eu que volto para uma cidade que foi sendo rapidamente substituída e encontro ruas de onde todos desertaram. Até os estranhos desapareceram. Sumiram os seus cansados habitantes, de pele seca e descorada pelo calor.
     Volto àquela cidade e tudo me é de novo familiar. Ando sozinho pelas ruas vazias, na claridade insurportável de uma tarde de outubro. O sol, porém, não tem fogo, não queima nada.
     Os meus passos não ressoam no silêncio. Atravesso montes de folhas secas que não crepitam. Nada ressoa, nada se move, não há vento nas árvores. Não entro nas igrejas, no mercado, no cemitério. Há muito deixei de ser católico, não faço transações, me desliguei dos mortos.
     Me desliguei dos vivos. Os meus filhos cresceram: não preciso mais deles. Ouço a voz de minha mulher me censurando que eu não preciso de ninguém. E ela, como sempre, tinha razão. Não preciso de ninguém. Mas estou aqui neste verão pedindo o refrigério das sombras.
     Estou aqui de novo na luz insuportável dos outubros desta cidade e sinto frio onde o calor me oprimia. Estou sendo substituído por mim mesmo neste meu corpo que se desgasta.
    O silêncio é impenetrável. Perdeu-se todo rumor de vida. Até as antigas tempestades de trovões, que sacudiam a cidade, morrem agora sem descer do azul.
     Vejo-me: sou um adulto incompleto, continuo a crescer dentro desta cidade morta, que não me abandona.
             obra: Um homem particular

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