quinta-feira, 2 de maio de 2013

O Antinarciso

               autor: H. Dobal   
 Narciso Teixeira doi um homem que um dia se aborreceu com a sua própria imagem. Era comunista, corcunda, franzino. Tipógrafo e jornalista, mais tipógrafo do que jornalista, tinha instalado a tipografia e a família numa rua sossegada no centro da cidade, num tempo em que todas as ruas eram sossegadas naquela cidade. Mais tarde, quando as lojas e os escritórios foram expulsando as famílias daquela rua, ele mudou-se para uma cidade grande e de lá jamais regressou.
     Sabe-se, no entanto, que continuou fiel aos seus propósitos até o fim. Nem uma só vez recuou no que tão rigorosamente tinha imposto a si mesmo.
     Foram ao todo dezessete anos sem consultar os espelhos. Viveu sempre na companhia de outras pessoas. No entanto, jamais alguém o surpreendeu num momento de fraqueza, num abandono, por mais breve que fosse, daquilo que os outros consideravam um capricho inexplicável. E pelo que se conhecia dele, não era homem que esmorecesse na solidão, que, sozinho. tivesse um ato de indulgência consigo mesmo.
     Os longos anos curvado sobre os tipos de sua gráfica, compondo os jornaiszinhos ou os boletins de propaganda, deram-lhe a corcunda, que o começo de velhice foi acentuando cada vez mais.
     A deformidade, porém, não o tornava repulsivo. A sua feiúra não agredia ninguém e lhe assentava como um atributo natural, já que a beleza e o vigor sempre lhe tinham sido estranhos.
     Talvez o barbeiro, que lhe fazia a barba e lhe cortava o cabelo sob a goiabeira no quintal, tenha sido o primeiro a observar aquela anomalia. Porque Narciso passou a recusar discretamente o espelho que lhe era oferecido. Limitava-se a apalpar a cabeça e a nuca, num gesto rápido, ou passar as costas das mãos pelo rosto e pelo queixo, como se fizesse uma verificação sumária, dando-se por satisfeito.
     Para os outros, era espantoso viver numa casa onde se escondiam os espelhos. Mas a verdade é que ele nunca deu ordem expressa nesse sentido. A mulher sempre obediente e lhe advinhando as intenções, numa solicitude rabugenta, é que foi compreendendo aos poucos e tomando providências para não o desgostar.
     Nem espelhos, nem vidros, e depois nem mesmo a superfície polída de um móvel ou um brilho de metal que pudesse refletir a sua imagem.
     Doía-lhe ver-se repetido, ver repetida a sua imagem, que a natureza oferecia aos outros, mas que ele, teimoso até a mais completa obstinação, como se quizesse tornar-se estranho a si próprio, jamais contemplou de novo.
              obra: "Um homem particular"

Nenhum comentário: